Bichos do Brasil: nomes de animais vindos das línguas africanas e nativas

No Brasil, há palavras que caminham como bichos: deslizam, sobem em árvores, batem asas no fim da tarde. São nomes que herdamos da floresta, do terreiro, do rio, do quilombo, da boca de gente que olhava o mundo com outros olhos e outras escutas. Nomear um animal, em muitos povos originários e africanos, não era apenas dar-lhe um título — era revelar sua alma, narrar sua história, traçar sua relação com os elementos.

Este artigo é uma expedição linguística e sensível por nomes de animais do Brasil oriundos de línguas indígenas — principalmente do tronco tupi — e de línguas africanas, como o quimbundo, o quicongo e o iorubá. Um percurso que vai além da etimologia: buscamos evocar o imaginário que se esconde atrás das sílabas, escutar os gestos dos vocábulos, e reconhecer os fios de memória que tecem o português falado no país.


I. A floresta que nomeia: palavras de origem indígena

O tronco tupi, em suas diversas ramificações, foi uma das grandes matrizes linguísticas das Américas do Sul. Ao longo dos séculos, ele se desdobrou em palavras que hoje parecem plenamente “portuguesas”, mas que nasceram da escuta cuidadosa dos povos da floresta. Esses nomes não apenas descrevem os bichos — narram seus hábitos, sugerem sua relação com os humanos e com a paisagem, expressam uma poética do contato.

1. Tamanduá

Do tupi: tama (“formiga”) + ‘duá (“devorador”) → “aquele que devora formigas”

Aqui, a nomeação é uma miniatura de etologia. O tamanduá é mais que um bicho exótico de documentário — é um arquétipo de estratégia, um ser de precisão. O nome não é adjetivo: é ação.

Nas culturas tupi, a forma verbal é o cerne do mundo. O bicho é seu fazer. E o tamanduá, com seu passo cerimonioso e sua língua de ponteiro, encarna esse princípio. Nomeá-lo é reconhecer seu ritual.

2. Capivara

Do tupi: kapi’wara → “comedor de capim”

É o maior roedor do mundo, mas seu nome não se inflama de grandiosidade. É uma palavra simples, de sabor vegetal. A capivara tem um nome que parece descansar à beira do rio, como ela. Uma palavra aquática, feita de sílabas suaves.

Sua presença no léxico nacional é hoje símbolo de um Brasil que reaprende a conviver com seus bichos urbanos. A palavra capivara virou meme, virou ícone — e segue sendo, paradoxalmente, silêncio e mansidão.

3. Jacaré

Do tupi: îakaré → “semelhante ao peixe”

A ousadia deste nome nos ensina que os povos originários nomeavam por analogia sensorial, não taxonômica. O jacaré é réptil, mas desliza como peixe, habita a água como peixe. Logo, é como peixe.

Essa forma de nomear nos convida a abandonar dicotomias: terra ou água? Vertebrado ou escamoso? O que importa é a dança entre os mundos. A linguagem indígena muitas vezes espelha a fluidez da vida — o nome não fixa, mas flutua.

4. Arara

Do tupi: arará, uma onomatopeia do canto da ave

A palavra parece nascer do próprio grito da ave. Dizê-la é invocar a mata. Arara é som puro — o nome como espelho do bicho.

Em várias línguas indígenas, as onomatopeias são mais que mímicas: são formas de encarnar o outro. Nomear a arara com sua própria voz é um ato de simbiose linguística. A palavra é canto, e o canto é palavra.

5. Surucucu

Do tupi: suruku’ku, provavelmente onomatopeia associada ao som seco que a serpente faz ao rastejar ou ao modo como assusta

É o nome de uma das maiores serpentes venenosas do Brasil. A repetição das sílabas dá à palavra uma sonoridade que arrepia — como o susto que a cobra provoca. Nome e sensação se fundem.

Neste caso, o nome não apenas descreve: performa. É palavra-feitiço, palavra-medo, palavra-memória.

6. Anta

Do tupi: tapi’ira

Anta é um dos poucos nomes que sobreviveram praticamente intactos. Apesar de sua imagem popular como bicho lento e “bobo”, a anta é na verdade um dos grandes jardineiros da floresta, dispersando sementes por vastas áreas. A palavra, curta e sólida, combina com o peso e o silêncio desse mamífero ancestral.

A etimologia revela como o nome original foi absorvido e adaptado, como tantas outras palavras indígenas — e com ele, parte do conhecimento ecológico que ele carregava.


II. Da África, com ritmo: os nomes que vieram com o corpo

A diáspora africana foi uma das maiores tragédias humanas da história, mas também uma das mais poderosas fontes de reinvenção cultural. No Brasil, africanos de dezenas de povos — em especial de línguas bantas e iorubás — trouxeram consigo não apenas memórias, mas vocabulários vivos.

Muitos desses vocábulos se enraizaram no português do cotidiano, especialmente no português popular, oral e musical. Alguns chegaram aos nomes de bichos — direta ou indiretamente. Nomes que, como o maracá ou o atabaque, vibram.

1. Marimbondo

Do quimbundo: marimbondo → vespa, inseto que fere

Mais que um nome, marimbondo é um alerta. É palavra que zune antes mesmo de ser dita. A sonoridade do termo parece vir com ferrão. Em diversas culturas de matriz africana, os insetos eram vistos como mensageiros ou guardiões. O marimbondo é um emissário de respeito.

O termo também sobrevive no imaginário popular: “mexer com marimbondo” é sinônimo de provocar retaliação. Uma sabedoria que vem de longe.

2. Macaco

Possivelmente do banto makaku

Apesar das disputas etimológicas — há registros também de uso em línguas ibéricas —, muitos estudiosos reconhecem a presença de raízes africanas no termo. Mais importante, porém, é sua vida semântica: macaco foi nome, depois insulto, depois símbolo de resistência.

O bicho é símbolo de esperteza, mas também de malícia, de irreverência. Nos terreiros, é personagem de folguedos, de encantarias. A palavra carrega cicatrizes — mas também sobreviveu.

3. Camba

Em algumas regiões do Norte e do Nordeste, camba é nome popular para certos insetos ou pequenos roedores, vindo do quimbundo kamba, “companheiro”.

É um caso curioso de como nomes afetivos podem se metamorfosear em designações zoológicas. O bicho vira quase parceiro. A linguagem popular inventa categorias com base em afeto, não em taxonomia.

4. Quimbanda-do-mato

Algumas serpentes ou lagartos são chamados de quimbanda-do-mato — alusão a um poder mágico, uma sabedoria das matas. Quimbanda vem do quimbundo e designa aquele que cura, que manipula forças invisíveis.

Nomear um bicho assim é elevá-lo a outra categoria: o animal como entidade. O nome é um sinal de reverência, não apenas de descrição.


III. Os nomes que cruzam fronteiras

Alguns nomes de animais no Brasil surgem da fusão de referências — indígenas, africanas, europeias. São palavras mestiças, sincréticas, mestiçagens sonoras que refletem o próprio país.

1. Camarão

Embora de origem latina, a forma brasileira da palavra e suas variantes regionais (como camurim) podem ter recebido influência de falares africanos, sobretudo pela musicalidade e morfologia.

Em algumas comunidades pesqueiras, a palavra ganha sentidos figurados, afetivos, simbólicos. Camarão é alimento, é bicho e é metáfora de fartura ou humildade. Em sambas antigos, é também símbolo de resistência — pescador, mar e bicho se fundem.

2. Acará

Do tupi akará, peixe comum na Amazônia. Mas o nome também se encontra em línguas iorubás, em que akará é bolinho de feijão.

A duplicidade é fascinante: o peixe e o bolinho compartilham nome e redondeza. Uma possível coincidência sonora se transforma em um pequeno mito da linguagem: dois mundos que se encontram no mesmo som.


IV. Silêncios e perdas: o que a língua esqueceu

Por trás dos nomes que chegaram até nós, há muitos outros que se perderam. Nomes dados por povos que foram dizimados, ou cujas línguas estão hoje em processo de desaparecimento.

Animais ainda presentes nos biomas brasileiros — especialmente na Amazônia e no Cerrado profundo — carregam nomes genéricos em português, mas já foram nomeados com precisão em línguas como pano, tukano, bororo, maxakalí. O que se perde não é só um nome: é uma forma de ver, de se relacionar, de reconhecer o bicho como parte de um cosmos.

Recuperar, documentar e valorizar essas línguas não é apenas trabalho de linguistas: é gesto de cuidado ecológico e cultural. É garantir que as palavras continuem a habitar o mundo.


Conclusão: nomear é semear memória

Cada vez que dizemos jacaré, cutia, marimbondo ou surucucu, estamos, talvez sem saber, evocando mundos. Falamos com as vozes que vieram antes de nós, muitas vezes sem terem sido ouvidas. Nomear um bicho, neste Brasil profundo, é mais que descrever: é se aliar, é pertencer, é recordar.

A língua portuguesa do Brasil não é uma herança estática — é uma construção viva, coletiva, mestiça, pulsante. E os nomes dos nossos animais revelam isso com força, beleza e poesia.

Se escutarmos com atenção, ouviremos que as palavras não dizem só o que são — mas também de onde vêm. E, talvez, para onde ainda podem nos levar.

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